A família como um sistema determinante de saúde

Família. Uma palavra pequena que pode nos remeter a diversos sentimentos. Um conjunto de pessoas que, funcionando como um sistema altamente complexo, exerce forte influência sobre a saúde dos indivíduos que o compõe, de maneira positiva ou negativa. Em alusão ao Dia Internacional da Família, celebrado no dia 15 de maio, proponho hoje uma reflexão para mergulharmos, ainda que superficialmente, nas particularidades do sistema familiar e sua importância para a saúde dos seres humanos.

Para começar, vale dizer que uma das definições antropológicas de família a toma como um grupo de pessoas com grande intimidade entre si, que possuem uma história e planejam um futuro juntas. Ao usarmos esta definição, geralmente estaremos falando da unidade familiar ou família nuclear, com seus componentes residindo, habitualmente, em um mesmo local. Percebemos, assumindo tal ideia de família, que não há necessidade da existência de parentesco biológico para que indivíduos sejam considerados membros de igual sistema familiar.


Uma família pode se comportar de maneira funcional ou disfuncional, e seus integrantes serão, respectivamente, mais ou menos saudáveis, em conformidade ao modo que se dá esse funcionamento. A compreensão do sistema familiar permite-nos entender que o estado de saúde do próprio sistema, bem como dos seus componentes, dependerá de causas múltiplas, tão diversas quanto podem ser as interações internas e externas observadas no contexto de cada família e seu entorno. 

Pelo pensamento sistêmico, deduzimos que, havendo uma pessoa doente em uma família, a doença afetará a todos os demais membros da família, a uns mais, a outros menos, segundo o nível de interação entre as partes. Verificamos também que o doente tem melhores chances de enfrentar e subjugar o processo patológico quando seu suporte familiar é adequado. Em contrapartida, um suporte familiar precário ou inexistente reduz significativamente as possibilidades de cura.

Raciocinando sob esse prisma, concluímos, sem muita dificuldade, que as doenças não ocorrem por mera transmissão biológica de genes. Mesmo nos raros casos de doenças com caráter predominante genético, como a hemofilia e algumas síndromes pouco comuns, em determinado ponto da história dessas famílias uma mutação ocorreu e se perpetuou. Estou convencido, ao menos até que algum dos amigos leitores me apresente alguma evidência contrária, de que mutações não ocorrem ao acaso, como querem postular os darwinistas, mas sim como resultados de sistemas familiares disfuncionais ou, em menor monta, de agressões ambientais.

As famílias disfuncionais normalmente são fruto de má adaptação às chamadas tarefas do desenvolvimento, que surgem universalmente em certos estágios da vida do indivíduo ou da família. Dois bons exemplos dessas tarefas seriam as novas demandas enfrentadas por um casal quando nascem os filhos ou quando marido e mulher juntos estão aprendendo a viver em um lar de onde os filhos já saíram. Dessa forma, a incapacidade dos membros de um sistema familiar em lidar com as transições previsíveis do ciclo de vida, etapas de mudanças esperadas conforme os integrantes da família envelhecem, ou com crises inesperadas, por exemplo, desemprego, acidentes e morte prematura, são traduções de habilidade insuficiente para cumprir as tarefas do desenvolvimento.

É importante ressaltar que a pobreza aumenta enormemente o risco de uma família não conseguir se adaptar às tarefas do desenvolvimento. Assim, famílias em condição sócio-econômica desfavorável têm maior chance de apresentar disfunção. Isto ocorre porque a esses sistemas familiares costuma faltar até mesmo aquilo que é infra-estrutural à manutenção de um mínimo estado saudável, a saber, alimentação balanceada, moradia digna e saneamento básico. Se cumprir com êxito as tarefas do desenvolvimento é uma árdua tarefa mesmo para os sistemas familiares que são providos dos recursos mínimos de sobrevivência, imaginemos quão grande é esse desafio para as famílias marginalizadas. Não nos deve causar espanto que as disfunções destas famílias perpetuem-se entre suas gerações. 

Outro aspecto que pode apresentar certa relevância para a observância de famílias disfuncionais reside no fato da família nuclear contemporânea estar sofrendo significativas mudanças em sua composição. O núcleo tradicional, formado por pai, mãe e filhos, em diversas situações não mais é observado. Debater as causas dessas mudanças foge um pouco do objetivo central deste texto, mas suas implicações sobre a saúde dos indivíduos são muito importantes. Para exemplificar essas alterações, poderíamos citar famílias nas quais a mãe solteira ou separada cria os filhos sem a ajuda do pai, aqueles núcleos familiares compostos por avós que educam netos cujos pais são dependentes de drogas, famílias sem um referencial paterno ou materno, entre tantas outras. Mencionar essas mudanças, no entanto, não significa afirmar que não existam famílias funcionais com características diversas do núcleo tradicional, pois isto seria o mesmo absurdo que sustentar que todas as famílias tradicionais funcionam bem. Sabemos que não é possível fazer tantas generalizações ao pensarmos sobre sistemas familiares.

Contudo, a antropologia mostra que as contribuições de gênero são essenciais e bastante singulares no que dizem respeito ao masculino e ao feminino. Sabe-se que é fundamental haver um equilíbrio entre essas contribuições para a formação da personalidade de um ser humano psiquicamente saudável e que a família nuclear tradicional, em teoria, é o modelo que tem a melhor condição para atingir o almejado equilíbrio. Logo, diversas implicações patológicas podem advir das modificações substanciais que têm ocorrido na estrutura da família nuclear, não apenas porque as famílias deixam de apresentar as figuras paterna e/ou materna, mas também porque em diversas delas, apesar da presença do pai e da mãe, estes progenitores não cumprem seus papeis de gênero frente aos filhos.

Finalmente, também poderíamos refletir sobre os sujeitos que, como células, compõem o organismo familiar, interferindo em seu funcionamento e, ao mesmo tempo, sendo influenciados por ele. Pensando de maneira psicanalítica, cada sujeito é sempre responsável por seus próprios atos e não há ato sem intenção, ainda que muitas vezes o ato possa expressar desejos inconscientes. Dessa forma, comportamentos saudáveis ou doentios são escolhas individuais, a partir das quais as pessoas enfrentarão doenças ou não. Por outro lado, percebemos que o meio familiar no qual a pessoa está inserida pode ser determinante sobre seus desejos, sejam estes conscientes ou não; consequentemente, a estrutura familiar mantém íntima relação com os atos individuais.

Com tudo isso, concluímos que ao profissional de saúde será muito valioso desenvolver um genuíno interesse em compreender o funcionamento do sistema familiar da pessoa que com ele busca atendimento. O cuidado que esse profissional proverá será de qualidade diretamente proporcional ao grau de entendimento que ele puder obter sobre o contexto familiar do indivíduo que procura ajuda. O conhecimento da família permitirá ao profissional executar, dentro de suas capacidades e habilidades, alguma abordagem com objetivo de promover saúde também ao sistema. Sentir-se compreendido em um sentido amplo, para alguém que se encontra doente, é muito mais que uma questão de empatia, é algo que pode determinar sua capacidade em reagir mais facilmente rumo à cura de sua patologia; do contrário, a possibilidade de padecer diante da doença é significativamente maior.


Imagem obtida no sítio: 
http://www.imom.com/wp-content/uploads/2014/06/family_fun_5_great_family_field_trips.jpg
(acesso em 20/05/2015)

Comentários

  1. Caro Ten Bruno.
    Conforme lia sua publicação, não deixava de, ao mesmo tempo, refletir sobre situações já vividas e vivenciadas por mim. De fato, o desequilíbrio familiar pode ser fator preponderante de doenças. Pela experiência, quando surge e se extende o desequilíbrio familiar, muitas vezes o doente não percebe "as tramas" dos desajustes, os demais componentes adoentem juntos e, às vezes, para piorar, surge alguém de outro núcleo familiar para "socorrer o doente", mas, não nota a sutileza da "raiz" que deu início à citada doença. Ouso refletir que temos, ainda, diversas influências oriundas de fora que são "ferozes" contaminadores para adoecer o indivíduo e, por conseqüência, adoecer os demais componentes do grupo. Falo da vaidade e orgulho. Esses vilões quando encontram "um hospedeiro" fazem estragos de difícil reparação e/ou irreparáveis, pois, encontram fortes barreiras em um grupo saudável que reagem a tal influência.
    Mais uma vez, "parabéns" pela escolha do tema.
    Fico honrado por fazer parte daqueles que podem, humildemente, deixar um comentário e agradecimento às suas inteligentes reflexões.
    William Amaral

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    1. Caro Major William, fico também honrado em poder tê-lo como leitor e contar com seus comentários, sempre trazendo adendos enriquecedores aos temas.
      Abraços.

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