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O xadrez e a psicanálise

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"Os jogadores de xadrez", de Honoré Daumier Não faz muito tempo que minha filha e eu aprendemos juntos a jogar xadrez, mas ele já se tornou um dos nossos programas preferidos. E nestes dias tenho pensado sobre algumas analogias interessantes entre esse jogo e a psicanálise. Vejamos. Tanto no xadrez quanto na análise há formas pré-definidas para começarmos, respectivamente, o jogo e a sessão, no entanto em ambos os casos não podemos antever como será o final. As peças no tabuleiro de xadrez têm posições iniciais fixas, reconhecidas por qualquer jogador, no mundo todo. Uma sessão de psicanálise, independente da corrente psicanalítica com a qual se trabalhe, também tem um início comum, que é quando o analista solicita ao paciente que este fale, sem censuras, sobre aquilo que lhe vier de modo espontâneo à mente. O transcorrer de uma partida de xadrez dependerá dos movimentos escolhidos pelos jogadores a cada jogada, com incontáveis possibilidades, que aumentam com o avançar das p...

Daredevil e O Mal-Estar na Cultura

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Que relação pode haver entre o temerário vigilante e o colosso texto freudiano? Matthew Murdock, que tem o Daredevil como alter ego, é para mim um dos personagens mais interessantes nos quadrinhos da Marvel. Não tanto por suas características ficcionais, mas pelo dilema que o persegue: dominar o mau ou deixá-lo sair? Católico confesso, Matt se diz temente a Deus e leva uma vida aparentemente de acordo com sua crença. Cidadão exemplar e honesto, trabalha como advogado defensor de gente inocente e de poucos recursos, geralmente atuando contra pessoas influentes e poderosas. No entanto, diante da face decadente, sombria, corrupta e criminosa da grande cidade em que vive, onde muitas vezes a justiça legalmente constituída tem pouca ou nenhuma chance de cumprir seu papel, ele substitui o terno de advogado por um traje de demônio, autorizando-se a usar de violência e a fazer justiça com as próprias mãos, enveredando-se por caminhos que seu lado civilizado certamente não o permitiria trilhar....

O desejo e a melhor versão de nós mesmos

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Qual é a nossa melhor versão? Para responder essa questão, cada um de nós precisa, antes, descobrir, nomear o que considera ter de melhor para mostrar ao mundo. E isto sem dúvida é de ordem muito particular. Alguns são bons em produzir pães, outros em cortar cabelos, outros, ainda, em erguer prédios. Uns são mais qualificados para esportes, outros para trabalhos artísticos, enquanto outros se destacam em atividades intelectuais. Enfim, poderíamos fazer uma lista interminável para ilustrar as inúmeras possibilidades das aptidões humanas, mas precisamos reconhecer que ninguém tem aptidão para tudo. Assim advertidos, voltemos à pergunta inicial, em outros termos: quais são nossas aptidões? Encarar tal indagação pela perspectiva da psicanálise passa pela via do conceito de desejo, que, em linhas bem gerais, indica nossas formas individuais de movimento em direção àquilo que nos atrai com todo nosso ser, ou seja, de corpo e alma. Numa análise apostamos na força do desejo, ainda que, num pri...

Reflexões necessárias para a clínica em saúde mental

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Para a Medicina, a existência de doença pressupõe que haja alteração biológica no estado de saúde de um ser, alteração que, via de regra, manifesta-se por um conjunto de sinais e sintomas. Os transtornos da saúde mental, embora sejam diagnosticados por sintomatologia específica, não cursam com anormalidades biológicas na esmagadora maioria dos casos ( em raras exceções, um transtorno mental pode ser secundário a uma enfermidade orgânica).  Isso é validado cientificamente, assim surgindo a ideia de que tais transtornos não seriam doenças, no sentido médico do termo. Apesar disso, é lícito afirmar que existem transtornos da saúde mental, tendo em vista que determinados quadros clínicos cursam com comportamentos, queixas e sintomas parecidos, mesmo em se tratando de pacientes diferentes. Logo, entendo que faz sentido e pode ser útil categorizá-los em algumas situações. As semelhanças entre os transtornos da saúde mental, todavia, costumam se restringir à possibilidade de descrição dos...

A fibromialgia e a lei

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Em alguns lugares vem se tornando lei: a fibromialgia passa a ser considerada uma “deficiência”. É o que diz, por exemplo, o projeto de lei n° 1573/2023 da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, ao reconhecer como deficientes as pessoas diagnosticadas com fibromialgia ( SÃO PAULO, 2023 ). E esse projeto está acompanhado por similares em diversos outros Estados do Brasil, de modo que os pacientes fibromiálgicos possam gozar dos mesmos direitos e garantias legais anteriormente assegurados somente às pessoas deficientes. Mas será que faz sentido enquadrar a fibromialgia no rol das deficiências? E que problemas podem advir dessa controversa equivalência?  Para começo de conversa, visando minimizar as polêmicas que este texto poderá causar, reconheço que a fibromialgia é, indubitavelmente, uma enfermidade que traz bastante sofrimento para quem a desenvolve, notoriamente em função das dores musculoesqueléticas, tanto em crises agudas quanto em apresentação crônica. Essas dores, s...

Revirando as supostas faces ocultas de Freud: uma resposta ao vídeo da Brasil Paralelo

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Freud por Vini Capiotti ( Superinteressante ) O presente texto é uma resposta ao vídeo da Brasil Paralelo intitulado “A face oculta de Sigmund Freud”, recentemente publicado, disponível no YouTube:  Costumo acompanhar os conteúdos da série de faces ocultas com entusiasmo, mas, como médico e psicanalista que sou, devo apontar que o pessoal da Brasil Paralelo pisou feio na bola nesse vídeo sobre Freud. Explico a seguir, comentando seu conteúdo em ordem cronológica. 1. Psicanálise não é psicoterapia , tampouco é psicologia clínica. Embora, ao longo da história, os termos tenham sido aproximados e até utilizados como equivalentes, atualmente são práticas clínicas cujas demarcações teóricas e, consequentemente, práticas diferem bastante, ainda que algumas psicoterapias se apresentem como “de orientação psicanalítica”. Falo um pouco mais sobre essa diferença em artigo publicado outrora neste mesmo blog. 2. A International Psychoanalytical Association (IPA) não é uma unanimidade e...

Nós e as perversões

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Na linguagem cotidiana, o termo “perversão” é frequentemente relacionado aos comportamentos sexuais anormais, corrompidos ou depravados. Também é corriqueira a utilização da palavra “perverso” como sinônimo de malvado e cruel. Definições de dicionários, obtidas em qualquer site de busca na internet, corroboram essas afirmações. Para a Psicanálise, no entanto, perversão é um conceito cujo sentido difere daquilo que o linguajar comum lhe atribui. Quem intenciona enveredar-se pelas vias psicanalíticas deve ter clareza de que se trata de um importante conceito e talvez precise esvaziar-se de ideias pejorativas ou estereotipadas a respeito das perversões. É verdade que no começo da obra freudiana, conforme apontam Roudinesco e Plon (1998), quando foi adotada conceitualmente, a perversão ainda era tratada como desvio daquilo que se considerava o padrão ou a norma do comportamento em termos sexuais. Desde aquela época, entretanto, Freud não atribuía a ela um viés depreciativo; ao contrário, e...