Fascismo e comunismo: extremismos em perspectiva histórica e psicanalítica

Se você é alguém que chama de fascista qualquer pessoa no espectro político da direita ou que nomeia de comunista qualquer um com ideias mais alinhadas com as correntes políticas de esquerda, convido-lhe a prosseguir com a leitura desta reflexão, que talvez possa lhe ampliar os horizontes, mostrando outra forma de lidar com posicionamentos políticos. O texto também é um convite a você que simplesmente deseja se aprofundar um pouco mais nesse tema.

Atualmente as palavras “fascismo” e “comunismo” estão bastante desgastadas e utilizadas em contextos inapropriados. A primeira é equivocadamente associada a “extremistas de direita”, enquanto a segunda, também de modo equivocado, a qualquer um que se afeiçoe a ideias mais à esquerda no pensamento político. Ao propor situar tais palavras numa perspectiva histórica, vamos buscar primeiro contextualizar fatos. E, num segundo momento, pensar esses fatos com a ajuda do olhar da Psicanálise.

Inicialmente, é importante entendermos o significado do extremismo na conjuntura política. Com a ajuda do dicionário, sabemos que extremismos são associados ao dogmatismo, ao fanatismo e às tentativas de imposição de estilos e modos de vida, bem como à negação radical de valores vigentes. O extremismo, unido ao unilateralismo, resulta em total fechamento ao diálogo e à negociação. Ao levar em conta esta definição, perceberemos que, dentro de todo o universo de pessoas que convivemos e conhecemos, possivelmente a maioria delas não seja exatamente “extremista” e intolerante em termos políticos, independente do lado do espectro cujas ideias se identifiquem mais.

Por exemplo, há quem defenda menos intervenções do Estado na economia, enquanto outros preferem que ele seja mais atuante. Há aqueles que consideram que a assistência social deveria estar vinculada a novas oportunidades de trabalho, enquanto outros entendem que não haveria necessidade de tal vínculo. Há pessoas contrárias ao aborto, que prezam pela vida humana no ventre materno, enquanto outras são favoráveis ao procedimento e desconsideram embriões e fetos como tendo direito à vida. Mas, mesmo pensando diferente sobre esses e outros temas, algumas pessoas conseguem debater de modo respeitoso, cada qual sustentando ou não seus argumentos.

Todavia, existe muita gente que não admite quem pensa diferente, chegando ao ponto de desejar a aniquilação desta pessoa, às vezes indo às vias de fato, como nos mostra o recente assassinato do ativista político norte-americano Charlie Kirk. Paradoxalmente, Charlie, uma pessoa conhecida por empreender debates saudáveis com quem tinha ideias diferentes das dele, foi rotulado diversas vezes na mídia como alguém “extremista de direita”, mas seu algoz não recebeu o título de “extremista de esquerda”. Eis uma situação reveladora do poder das narrativas, construídas para exercer fortíssima influência no imaginário das pessoas, mesmo não estando fundamentadas na verdade dos fatos, como já nos alertou um famoso presidente nos trópicos, conhecido por emplacar potentes narrativas no imaginário popular.

Guardadas as devidas proporções, também são bastante contraditórias, para dizer o mínimo, as narrativas que não hesitam associar ao fascismo, rapidamente e sem fundamento, qualquer ideia do espectro político de direita. O fascismo, cuja origem remete à Itália da primeira metade do século XX, no período entre as duas grandes guerras, é uma ideologia política caracterizada pelo autoritarismo, pois repreende sua oposição por meio da força e da violência, e vale-se também da imposição, se necessário for, para controlar a economia. Ou seja, não há no fascismo espaço para o debate de ideias. A censura é regra e quem pensa contra o regime tem que ser silenciado ou eliminado. O Estado é grande, inflado e controlador dos meios de produção. Por outro lado, se tomamos algumas das principais ideias defendidas hoje pela maior parte do espectro político da direita, observamos exatamente o oposto das ideias fascistas, pois se defende a liberdade de expressão, a democracia transparente (eleições com possibilidade de auditagem dos votos), o direito à propriedade privada, o Estado enxuto e o liberalismo econômico. Não se trata aqui de concordar ou discordar das ideias da direita, apenas de demonstrar com clareza que elas passam bem longe das ideias fascistas.

Chegaremos a uma constatação igualmente interessante se compararmos o ideário fascista e o padrão de governo que se instalou em países balizados por ideias comunistas. Da União Soviética de Lênin e Stálin à Rússia de Vladimir Putin, passando pela China de Mao Tsé-Tung e Xi Jinping, pela Coreia do Norte de Kim Jong-un, pela Cuba de Che Guevara e Fidel Castro, e pela Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, entre outros países de ideias da mesma linhagem, em nenhuma dessas nações há, de fato, democracia. São ditaduras. E todas têm características comuns ao fascismo, já expostas acima. Esta similaridade é inescapável de uma leitura honesta da realidade, de modo que esses países, que a priori se declaram “antifascistas”, podem ser agrupados junto com o fascismo sob a mesma rúbrica, chamada de totalitarismo, conforme explica o professor Anthony James Gregor em seu livro “Marxismo, Fascismo e Totalitarismo: capítulos da história intelectual do radicalismo”, publicado recentemente.

Alguns dirão que os ditadores comunistas de hoje deturparam as ideias originais de Karl Marx e Friedrich Engels. Podem ter alguma razão, pois, apesar do nome “ditadura do proletariado” ser encontrado na obra de Marx, essa ditadura da classe proletária, segundo ele, não deveria ser vista como uma tirania, mas como fase necessária de transição para o comunismo, este sim o estágio revolucionário final no qual, enfim, estariam abolidos o Estado, as classes sociais e a propriedade privada. Todavia, a verdade histórica é que as ditaduras que se impuseram em países de tradição marxista não são ditaduras proletárias, tampouco dão mostras de que se tornarão países livres.


Trazendo algo do olhar psicanalítico para os problemas em questão neste texto, cito Jacques Lacan, no seminário 17, intitulado “O avesso da psicanálise”, onde ele afirma: É singular ver que uma doutrina tal como a de Marx, que instaurou sua articulação sobre a função da luta, da luta de classes, não impediu que dela nascesse aquilo que agora é justamente o problema que se apresenta a todos, a saber, a manutenção de um discurso do senhor. Tenho muitos colegas psicanalistas alinhados com ideias de esquerda e outros tantos alinhados com ideias de direita, mas estou convicto de que aqueles que fazem jus ao ofício de psicanalista são contrários aos discursos impositivos que buscam o controle e a dominação. Ao contrário da doutrinação, o discurso do analista é questionador e subversivo, portanto, pressupõe a liberdade. A psicanálise não floresce em lugares atravessados pelo totalitarismo. Não por acaso, psicanalistas nas ditaduras supracitadas enfrentaram e ainda enfrentam enormes dificuldades, como silenciamentos e proibições.

Antes de Lacan, nas “Novas conferências introdutórias à Psicanálise”, Freud já alertava que o marxismo estava desenvolvendo uma perturbadora semelhança em relação às doutrinas que supostamente combatia, especialmente ao não admitir a existência de ideias contrárias às suas. Os marxistas eram intolerantes desde então e impediam quaisquer críticas ao movimento comunista. E o pai da Psicanálise também anteviu, na obra “O mal-estar na cultura”, que as ideias comunistas provavelmente não dariam bons frutos, pois elas se sustentam, segundo ele, numa ilusão, qual seja, a de que o fim da propriedade privada possa eliminar a agressividade, as disputas e os conflitos entre os seres humanos. Não, não pode. A agressividade e a falta que habitam em nós, humanos, advém do fato de que somos atravessados pela linguagem que vem de outros humanos. E, embora traumático, o atravessamento de cada um de nós pela linguagem é exatamente o que nos constitui como humanos e estrutura nossa psique. Trata-se, pois, de um trauma necessário.

No melhor dos mundos, que, apesar de livre, não é um mundo perfeito, aprendemos a reconhecer essa agressividade, a nomeá-la e a decidir, levando em conta a responsabilidade de cada um no laço social, para onde convém e para onde não convém canalizar nossas energias. E também decidimos como lidamos com a falta. Nesse mundo somos devidamente punidos quando infringimos a lei, mas não há punição prévia, somente se pune quando atos criminosos se concretizam. Por outro lado, no mundo dos totalitarismos quase sempre há alguém decidindo por nós o que fazer, nos ensinando o jeito “certo” de se pensar, e nos censurando, de maneira que a vida vai perdendo suas cores, diversidade e inventividade. E, claro, este último é um lugar em que a psicanálise não se cria.


Bruno Guimarães Tannus
psicanalista e médico especialista em Medicina de Família
CRM-PR 25429 / RQE 35797

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Imagens utilizadas no post, na sequência em que aparecem:

Fascismo High Res Illustrations - Getty Images

O fascismo como solução neurótica - Brasil de Fato

Illustrations from The Communist Manifesto - A Graphic Novel

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