Reflexões necessárias para a clínica em saúde mental

Para a Medicina, a existência de doença pressupõe que haja alteração biológica no estado de saúde de um ser, alteração que, via de regra, manifesta-se por um conjunto de sinais e sintomas. Os transtornos da saúde mental, embora sejam diagnosticados por sintomatologia específica, não cursam com anormalidades biológicas na esmagadora maioria dos casos (
em raras exceções, um transtorno mental pode ser secundário a uma enfermidade orgânica). Isso é validado cientificamente, assim surgindo a ideia de que tais transtornos não seriam doenças, no sentido médico do termo.

Apesar disso, é lícito afirmar que existem transtornos da saúde mental, tendo em vista que determinados quadros clínicos cursam com comportamentos, queixas e sintomas parecidos, mesmo em se tratando de pacientes diferentes. Logo, entendo que faz sentido e pode ser útil categorizá-los em algumas situações.

As semelhanças entre os transtornos da saúde mental, todavia, costumam se restringir à possibilidade de descrição dos sintomas. Em verdade, eles são construções diagnósticas ateóricas, e ninguém pode prever com exatidão a evolução do caso de um paciente específico diagnosticado com algum desses transtornos, ao contrário do que costuma acontecer na evolução natural de muitas doenças orgânicas quando não tratadas.

Depressão, ansiedade, bipolaridade, esquizofrenia, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno de espectro autista (TEA) etc. são condições clínicas que têm em comum a característica de possuírem evoluções naturais extremamente variáveis e singulares. Assim também é a resposta aos tratamentos que visam estabelecer ou recuperar a noção de saúde mental de alguém, pois estamos falando de estados de afetos e expressão das pessoas, não de afecções biológicas que poderiam ser reparadas.

Certamente não sou o único a argumentar e defender a ideia de que transtornos mentais não são doenças. E há colegas médicos que vão além, afirmando que, se transtorno mental não é doença, o diagnóstico em saúde mental não teria utilidade do ponto de vista clínico (vide o artigo dos colegas médicos de família Gabriel Calixto Pulhiez e Armando Henrique Norman). Será?

De fato, vivemos tempos de preocupante excesso nos diagnósticos dos transtornos mentais, situação denunciada em diversos artigos e livros, entre os quais destaco "Anatomia de uma epidemia”, de Robert Whitaker. Respaldados pelo DSM-5, um manual no mínimo questionável, muitos médicos acabam rotulando como “pacientes psiquiátricos” pessoas com sintomas mentais e comportamentos que, longe de se configurarem transtornos, podem muito bem fazer parte da vida humana normal. Nestes casos, concordo com aqueles que afirmam que o diagnóstico é inútil e, claro, prejudicial.

Enquadrar ou não determinado conjunto de sintomas mentais em um diagnóstico vai depender também do viés pelo qual se entende o sintoma. Pela lente da medicina, sintoma é algo incômodo que deve ser eliminado, custe o que custar (mesmo que a regra seja não haver cura, apenas "controle sintomático"). Pelo olhar da psicanálise, o sintoma é uma oportunidade, algo a ser escutado e decifrado dentro do contexto singular de cada pessoa, através de um processo que usualmente tem efeitos terapêuticos, embora não se possa garanti-los. Logo, o médico atravessado pela psicanálise costuma ter mais cautela e parcimônia para propor diagnósticos psiquiátricos, mais ainda para indicar tratamentos, especialmente aqueles em que se valerá da prescrição de psicofármacos.


Mas, voltando à pergunta que lancei acima, acredito que há situações clínicas relativas à saúde mental em que é importante sim trabalharmos norteados por uma hipótese diagnóstica. Apesar de não estarmos corrigindo um desequilíbrio químico cerebral quando lidamos com sintomas ou comportamentos considerados transtornos da esfera psíquica, é notório que determinados psicofármacos provocam uma experiência melhor e/ou mais segura agindo sobre certas condições psíquicas do que sobre outras. É bem documentado, por exemplo, o risco de ser catastrófica a prescrição de antidepressivos para alguém com tendência à mania.

E para a clínica psicanalítica talvez o diagnóstico seja mais importante do que para a atividade médica, pois ele determina que tipo de intervenção seria mais ou menos apropriado para o psicanalista realizar na direção do tratamento. Todavia, tanto a elaboração quanto a forma dos diagnósticos psicanalíticos são diferentes em relação à medicina, haja vista eles se fundamentarem pelo modo predominante através da qual o paciente se insere na linguagem, ou seja, sua estrutura clínica. Isto implica, no cenário analítico, hipóteses diagnósticas mais abertas e sujeitas a revisões.

Se decidirmos que vale a pena o diagnóstico em um caso clínico, é importante levar em conta a afirmação do proeminente psiquiatra norte-americano Allen Frances, em seu livro intitulado “Voltando ao normal”, no qual ele diz que o processo diagnóstico em saúde mental é um filme, não uma fotografia. Considero essa analogia especialmente relevante, pois hoje incontáveis pacientes recebem diagnósticos de transtornos da saúde mental de forma bastante leviana, após não mais do que alguns minutos de consulta médica ou entrevista preliminar de psicanálise. No entanto, um diagnóstico apropriado, notoriamente nessa seara, em que não há objeto de estudo palpável, mensurável ou demarcável, demanda maior tempo de observação, análise e testagem de hipóteses.

Reforço a ideia de que, ao lidarmos com a mente, estamos lidando com estados de afeto e expressão dos seres humanos. Sendo assim, não cabe ter pressa, pois esses estados podem ser fugazes, ou seja, apenas sintomas transitórios, não propriamente transtornos da saúde mental que precisam de diagnóstico, muito menos de tratamento. Além disso, os estados afetivos alteram-se conforme as cenas da vida, adaptam-se às necessidades do nosso teatro psíquico, descarregam pulsões (das quais, não raro, sabemos pouco) e podem até ser dissimulados.


Porque a vida é movimento, é preciso deixa-la fluir. Em outras palavras, o filme tem que desenvolver bem seu roteiro antes de afirmarmos coisas como um diagnóstico psiquiátrico ou psicanalítico. E mesmo assim, em se tratando da psique, esse tipo de afirmação será de algum modo sempre hipotético, passível de revisão num futuro qualquer. De fato, pois, a ideia do filme, melhor ainda se for um longa-metragem, faz mais jus ao processo de diagnosticar corretamente em saúde mental. Fotos podem ser belíssimas, exprimindo tanto o melhor quanto o pior da vida, mas fora de contexto elas não se sairão muito bem em ajudar a compreender a história de alguém.

As ponderações acima, à primeira vista, podem parecer elucubração filosófica, mas, caso sejam compreendidas e introjetadas por pacientes e profissionais, elas contém a semente para uma mudança paradigmática necessária ao cuidado em saúde mental, de modo que este cuidado seja mais realista, genuíno e individualizado. E, ainda, trazem consigo a ferramenta essencial para modificar um cenário infeliz dos tempos atuais, onde incontáveis sujeitos são aprisionados com as amarras de diagnósticos supostamente imutáveis de transtornos mentais.

Bruno Guimarães Tannus
psicanalista e médico especialista em Medicina de Família
CRM-PR 25429 / RQE 35797

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Fontes das imagens utilizadas no post, na sequência em que aparecem:

Mental Health Benefits of Art
https://customcanvasprints.com/blog/blog_posts/benefits-of-art
[acesso em 08 fev 2025]

World Mental Health Day
https://studiojoyeeta.com/product/world-mental-health-day/
[acesso em 08 fev 2025]

State of mind and mental health concept as a melancholic lone pe is a piece of digital artwork by PsychoShadow ART
https://fineartamerica.com/featured/state-of-mind-and-mental-health-concept-as-a-melancholic-lone-pe-psychoshadow-art.html
[acesso em 08 fev 2025]

Comentários

  1. Prezado Dr. Bruno, parabéns pela excelência do texto; realmente estamos diante de uma complexidade de ideias e ações que podem comprometer, e muito, as pessoas com problemas de ordem psíquica. Uma profunda reflexão e atitudes mais conscientes, na linha de seu artigo, são fundamentais

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  2. Caro Maurício,
    Obrigado por sua leitura e pelo comentário!
    Que este artigo possa ajudar mais pessoas, sejam elas pacientes ou profissionais de saúde, a refletirem e tomarem decisões mais sensatas diante dos problemas de ordem psíquica.

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