Por que a psicanálise é diferente das psicoterapias?

Arte na capa do Seminário 6 de Jacques Lacan

Ouço eventualmente alguns ruídos entre psicanalistas, vindos de colegas que questionam a ideia de apresentarmos a psicanálise como um tratamento. No entanto, logo nas primeiras afirmações de Jacques Lacan durante seu sexto seminário, cujo tema é “o desejo e sua interpretação”, encontramos uma referência muito explícita à psicanálise como tal. Ele diz que uma análise [...] é um tratamento, um tratamento psíquico, o qual incide sobre vários níveis do psiquismo. Podemos apontar, por outro lado, uma nítida diferença entre a psicanálise e outras abordagens terapêuticas do psíquico. Vejamos a seguir.

Na sequência dos dizeres de Lacan no mesmo seminário, ele ressalta o fato de que a psicanálise é um tratamento modificador de estruturas. Outras abordagens do psíquico, por sua vez, são intervenções, digamos em grande parte, que priorizam atenção direta aos aspectos comportamentais do indivíduo, ou seja, nelas o objetivo principal é tentar ensinar ao paciente um caminho supostamente melhor para ele lidar com seus sofrimentos. E para muitas pessoas este tipo de ajuda pode ter grande valor em algumas circunstâncias da vida.

O caso é que, quando não se mexe na estrutura psíquica, a maior parte dos sintomas insiste, se repete, retorna ou se desloca. Pois quando a estrutura psíquica não é alterada, o sofrimento se mantém, ainda que em nova roupagem ou, não raro, camuflado sob os efeitos de alguma medicação psicotrópica. E, em linhas gerais, a forma como a pessoa lida com seus sofrimentos também não se modifica.

O diferencial da psicanálise, que a faz ter potencial para mudar uma estrutura psíquica, é de ordem conceitual, a saber, um conceito psicanalítico com significativas implicações clínicas: o desejo, este sobre o qual Lacan discorre no seminário 6. Não se trata aqui do desejo pela via do senso comum, que seria equivalente ao querer. Para a psicanálise, o desejo é uma força motriz que impulsiona o sujeito, impelindo-o em uma ou outra direção, determinando suas relações com objetos, bem como os estados afetivos desse sujeito. Por isso, é relativamente comum não querer aquilo que se deseja ou não se desejar aquilo que se diz querer.

Como conceito psicanalítico, o desejo não é uma simples vontade, tampouco uma necessidade, porque ele determina situações difíceis ou até impossíveis de se controlar voluntariamente, como as obsessões que se tornam compulsões, à revelia do querer consciente da pessoa. Quem não conhece alguém que diz, por exemplo, querer parar de usar drogas, querer comer de maneira mais saudável para emagrecer ou querer se desvincular de um relacionamento tóxico, mas que, no fim das contas, insiste na mesma repetição e não consegue sair do lugar?

Desire - Edvard Munch (1907)

O desejo é visto como algo mais profundo, enraizado na história e na fantasia do indivíduo. Ele tem íntima relação (em verdade está totalmente condicionado) com as formas através das quais a pessoa, desde momentos bastante arcaicos da sua própria história, foi atravessada pelas palavras, inserida na linguagem. É assim que todos nós desenvolvemos um jeito muito particular de nos posicionarmos no mundo e de lidarmos com as demandas dos outros. É desse grande Outro, lugar conferido aos seres humanos e cuidadores mais próximos em nossa infância, que vêm as primeiras palavras e letras que nos marcam pelo resto de nossas vidas. (Leia mais sobre isso no texto "O desejo e a melhor versão de nós mesmos", que também publiquei aqui no blog recentemente.)

O trabalho do psicanalista, retomando Lacan na mesma referência, passa portanto pela essencial função de implicar o sujeito no desejo, e isto é exatamente o que diferencia suas intervenções das outras formas de abordagem do psiquismo. Trata-se de um trabalho que sempre faz aparecer essa estrutura, legitimamente prevalente nele, o sujeito.

Mas esse ofício de psicanalista vai além, pois busca, ao identificar situações de sofrimento, abrir novas possibilidades para o desejo singular de cada paciente. Ao desgrudar o desejo daqueles gozos que não levam a nada, a experiência analítica pode mostrar caminhos até então não explorados pela pessoa em análise, caminhos através dos quais talvez ela consiga viver a vida com mais contentamento, paixão, inventividade e resiliência, sem a pretensão inocente de que a existência será um mar de rosas.

Bruno Guimarães Tannus
psicanalista e médico especialista em Medicina de Família
CRM-PR 25429 / RQE 35797

Comentários

  1. Dr. Bruno, como costumeiro, um excelente e enriquecedor texto. Parece-me que o desejo estaria vinculado ao inconsciente e o querer, mais ao âmbito cognitivo, e essa questão de desejar o que se quer e vicê-versa passaria pela "solução" desse aparente conflito; não sei se faz sentido.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Estimado Maurício, sempre é bom ler seus comentários aqui. Acredito que você tenha razão: quando há conflito entre o que se deseja e o que se quer, a melhor solução é encontrar um caminho através do qual se possa querer aquilo que se deseja, conciliando-os, ou então reconhecer que não é conveniente realizarmos determinado desejo e conseguir seguir em frente com essa renúncia. Afinal, para vivermos bem em sociedade, nem todos nossos desejos particulares devem ser realizados. Como diria o apóstolo Paulo, tudo nos é permitido, mas nem tudo nos convém. Abraços

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O desejo e a melhor versão de nós mesmos

Reflexões necessárias para a clínica em saúde mental