Câncer de próstata: doença ou invenção?
Quando se fala sobre saúde do homem, em especial no quesito
prevenção, uma das primeiras doenças que lembramos é o câncer de próstata. Isto
não é uma surpresa, pois campanhas nacionais como o “Novembro Azul” têm
massificado, com um estrondoso sucesso, a ideia de que o rastreamento dessa
doença é algo importante para todas as pessoas do sexo masculino após certa
idade. Refiro-me ao grande sucesso da ideia porque, recebendo diversos
pacientes no consultório para realização de avaliações preventivas, incluindo rastreamento
de doenças, percebo que é regra, não exceção, a preocupação dos homens em
relação ao câncer de próstata. Será mesmo que há fundamento para tanta preocupação?
Inicialmente, é importante entendermos que rastrear uma doença
significa tentar diagnosticá-la antes que ela provoque sintomas no indivíduo
que se submete ao rastreamento. Rastrear uma doença, portanto, não significa
impedir sua ocorrência. Se uma pessoa já apresenta sintomas, o processo de
busca do diagnóstico é chamado de investigação, diferindo bastante do processo
de rastreamento, também chamado screening. Pensar sobre este último, em
especial no contexto do câncer de próstata, é a proposta do texto que o amigo
leitor está acompanhando. Então, tenhamos em mente que o foco hoje é uma reflexão
sobre pessoas que estão assintomáticas.
Fundamental é sabermos que a maioria das doenças não se enquadra
como viável para rastreamento, pois, para se decidir quanto à viabilidade ou
não de ser rastreada determinada patologia, há que se levar em conta uma gama
de fatores. O primeiro deles, já mencionado acima, é a possibilidade de
diagnosticar a doença antes do surgimento de sintomas a ela atribuíveis. Também
deve ser necessário que o processo de screening
não ofereça muito risco ou desconforto ao paciente e que seus eventuais
benefícios superem seus potenciais danos. Finalmente, espera-se que o
rastreamento tenha custo acessível, boa relação custo-efetividade e esteja
embasado em evidências científicas, as quais demonstrem que, uma vez efetuado o
precoce diagnóstico da doença, exista um tratamento disponível e capaz de modificar
positivamente sua evolução.
Portanto, as considerações anteriores sobre rastreamento
explicam, por exemplo, porque um jovem assintomático de vinte e poucos anos não
precisa ser submetido a tomografias de crânio de rotina para verificar se ele
tem um tumor cerebral, porque uma mulher de cinquenta anos que está se sentindo
bem de saúde não deve ser levada a um cateterismo cardíaco anual para verificar
se ela possui doença arterial coronariana, ou porque um homem sexagenário
saudável não necessita submeter-se a uma cintilografia óssea de corpo inteiro bianual
para saber se apresenta metástases de algum câncer.
Os exemplos utilizados no último parágrafo ilustram casos em que
não há recomendação de screening e são,
claro, um tanto exagerados, se comparados à possibilidade de rastrear o câncer
de próstata. Afinal, desde o início dos anos 1990, com a adoção da molécula PSA
(Prostate-Specific Antigen) no rastreio desse câncer, um enorme segmento
de profissionais de saúde tomou como verdade, ingenuamente ou não, os
benefícios que tal procedimento teria, passando então a vender a ideia de sua
importância a determinado grupo etário de homens. Muitos destes homens não
somente compraram essa ideia, mas também passaram a ser grandes consumidores de
consultas médicas, exames e procedimentos destinados à busca pelo “temido”
câncer de próstata, fomentando um lucrativo mercado.
O câncer de próstata é, reconhecidamente, um importante problema
de saúde, por se tratar, entre as neoplasias, de uma doença frequentemente
diagnosticada como causa de morte em homens. No entanto, evidências científicas
atuais sugerem que seu rastreamento traz um benefício apenas pequeno,
especialmente se considerados os efeitos danosos que muitos homens podem sofrer
ao serem submetidos ao screening dessa
doença.
Traduzindo em números os benefícios do rastreamento da neoplasia
da próstata, uma revisão do UpToDate® (www.uptodate.com), atualizada em março do
corrente ano, aponta um estudo de seguimento, cuja duração foi de 13 anos, que
demonstrou, durante esse período, serem necessários 781 homens submeterem-se ao
rastreamento para que somente uma morte pelo câncer de próstata seja evitada.
Pode-se então concluir que 780 homens submeteram-se desnecessariamente aos
exames e que a chance de alguém aleatoriamente se beneficiar desse screening
é de aproximadamente 0,13%. Logo, a chance de não ser beneficiado é da ordem de
99,87%.
O grande problema da realização indevida de exames, como no caso
exemplificado desses 780 homens (ou 99,87% da amostra), não reside no tempo perdido
pelos diversos pacientes que não se beneficiam do rastreamento, obtendo
resultados de exames normais, mas sim no fato de que alguns deles podem ser
prejudicados, ao tornarem-se vítimas de algo chamado sobrediagnóstico.
Sobrediagnóstico (overdiagnosis) refere-se a qualquer
condição detectada por rastreamento que não evoluiria clinicamente ao ponto de
provocar sintomas ou reduzir a expectativa de vida do indivíduo rastreado.
Especificamente no caso do screening com o PSA, estima-se que 23 a 42%
dos cânceres de próstata assim diagnosticados enquadram-se em sobrediagnóstico.
Este dado é corroborado por séries de autópsias que, apesar de realizadas em
corpos de homens que morreram por outras causas que não o câncer de próstata,
demonstraram a presença deste câncer em 30 a 45% dos falecidos entre a quinta e
a sexta décadas de vida; nos cadáveres que abrigaram vida por mais de 70 anos,
a prevalência foi ainda maior: 80%. Considerando que doença é aquilo que nos
faz sentir menos saudáveis, não me parece justo nomear uma neoplasia de
próstata sobrediagnosticada como sendo uma doença. Por que não chamá-la de
invenção?
É muito comum iatrogenias seguirem-se ao sobrediagnóstico, a
saber, investigações adicionais e confirmatórias, bem como tratamentos inadvertidos.
Além de muitas vezes dispendiosos e geradores de ansiedade, esses procedimentos
podem causar danos às pessoas, entre os quais poderíamos citar a mortalidade
perioperatória das prostatectomias (cirurgias de retirada da próstata),
variando de 0.1 a 0.5%, e os potenciais efeitos adversos dessas cirurgias e das
radioterapias, tais como incontinência urinária e disfunção sexual, dois
problemas bastante comuns nessas situações.
Em virtude do cenário descrito, instituições como The United
States Preventive Services Task Force, American College of Physicians,
American Cancer Society, Canadian Task Force, American
Urologic Association e o Instituto Nacional do Câncer no Brasil recomendam
atualmente que o rastreamento do câncer de próstata seja uma opção aos homens,
não uma obrigação como diversas campanhas sugerem por aí. Para ser uma opção,
contudo, é essencial que os homens envolvidos tenham acesso e compreendam as
informações sintetizadas aqui. Assim eles estarão em boas condições de escolher
aquilo que lhes parecer mais conveniente quanto ao screening com PSA,
decidindo em conjunto com seus médicos, após também serem devidamente
considerados eventuais fatores de risco individuais e familiares.
Olá Dr Bruno. Sempre gosto muito de suas opiniões, mesmo quando não concordo em todos os pontos. Se lembrarmos dos dados que tínhamos sobre o câncer de próstata nos anos 80, vamos perceber que a grande maioria dos diagnósticos só era feito com doença avançada e tanto os tratamentos como as discussões sobre custo-benefício como estas que vc coloca hoje eram desconhecidas. Lembre-se, até o tratamento cirúrgico é uma coisa recente, pois antes quase todos morriam de doença sistêmica. Digo isto porque hoje depois de tantas campanhas e tantos diagnósticos de câncer de próstata, fica a impressão de que sabemos sim diagnosticá-lo, mas ainda não temos todas as ferramentas para dizer qual desses tumores realmente seriam responsáveis pelo óbito do paciente. Você já citou o caráter degenerativo e relacionado com a idade que esta neoplasia da próstata apresenta. Em países escandinavos existem protocolos para o não rastreamento e até o acompanhamento deste diagnóstico sem intervenção terapêutica - o watchful waiting. Levaria em consideração níveis de PSA e Gleason baixo na biópsia. No entanto, em todas as outras culturas onde foi tentado esta estratégia, Brasil inclusive, os resultados acabaram culminando com aumento de morbimortalidade dos envolvidos. Em países de cultura latina como a nossa, onde a possibilidade de acesso ao melhor tratamento é sempre incerto, tanto no SUS quanto no convênio, é muito difícil um paciente aceitar seu diagnóstico e consentir em realizar apenas acompanhamento. Portanto concordo com você quando se refere ao alto número de screenings para se salvar uma vida, e acrescento que necessitamos de outros métodos diagnósticos com maior especificidade, mas lembro também que graças às políticas de screenings da próstata hoje a saúde masculina atingiu até os menos esclarecidos, e melhoramos nossos índices de tratamento para HPB, DAEM, Disfunção erétil e doenças metabólicas relacionadas ao envelhecimento masculino. Particularmente eu ainda prefiro fazer meu exame de próstata anual e aproveitar para pedir meu exame de colesterol, do que aguardar algum sintoma e depois morrer de dor óssea. Obrigado pelo espaço. Ten Stark.
ResponderExcluirCaro Ten Stark, sou eu quem devo agradecer por sua participação aqui, afinal de contas, a visão de um bom especialista em Urologia sobre esse tema certamente enriquece o debate. Seu comentário demonstra a importância de avaliarmos também culturalmente e socialmente o contexto de cada indivíduo que busca uma avaliação preventiva. E acredito que fortalece a ideia da medicina centrada na pessoa e nas decisões compartilhadas.
ExcluirA discussão sobre o câncer de próstata pode ainda abrir precedente para pensarmos em algo que muitas vezes é negligenciado: por que algumas pessoas desenvolvem tumores? Claro que este é um tema ainda mais complexo, mas quem sabe ele não pode se tornar uma postagem no futuro? Adentraríamos aqui em outra questão fundamental: o medo do inevitável, ou seja, da morte.
ExcluirGrande abraço, Ten Stark! E me perdoa por eu quase ter denunciado sua identidade secreta.
Caro Ten Bruno.
ResponderExcluirÓtima a técnica que oferece o assunto ao leigo.
O estudo, alinhado pela comprovação científica, oferece e reforça a certeza sobre fatos naturais.
Minha formação profissional não me habilita colaborar com seus conhecimentos, no entanto, pela vivência, ouso fazer um comentário não fundamentando, mas, argumentando por "meus achismos e crenças". Imagino que temos "capacidade mental" positiva e negativa. Uma pessoa humana (como se conceitua no direito civil) que, pelas tristezas da vida, decepções, dores morais e remorsos, pode despertar centros mentais capazes de adoecer o corpo? Em contrapartida, aquele que tem "fortes motivos" para viver (tem consciência que tem missões na vida), referências nobres e paz interior, pelos próprios centros emocionais, terá capacidade de auxiliar nos diagnósticos e, por que não, colaborar com o médico pela cura?
Certa vez li essa reflexão: "tudo que criamos para nós, de que não temos necessidade, se transforma em angústia, em depressão".
Obrigado e parabéns.
William Amaral.
Caro Major William,
ExcluirFico muito satisfeito se o texto conseguiu oferecer sobre o tema um entendimento claro também para quem não é profissional de saúde, pois este era um dos meus grandes objetivos ao escrevê-lo.
Sobre o poder da mente frente aos processos corporais, sigo sua linha de pensamento, e particularmente acredito que tal poder seja absoluto, embora a ciência tenha dificuldades de comprová-lo por seus limitados métodos, que priorizam aquilo que podemos ver. Considero a ciência muito útil, mas jamais suficiente. Felizes são os cientistas que compreendem isso.
Obrigado por sua participação neste espaço, sempre trazendo motivação a este "blogueiro".
Abraços.