Reflexões médicas e psicanalíticas sobre um caso de enxaqueca
Se é verdade que na medicina a clínica é soberana, como me disse outrora um estimado professor, sua afirmação parece também se aplicar muito bem à psicanálise. É sempre a partir da clínica que se constroem as boas teorias nesses campos de atenção ao humano. E de nada valeriam as teorias se não houvesse o fazer clínico para aplicá-las. Assim sendo, posto que o presente trabalho se propõe a articular medicina e psicanálise, nada melhor do que ilustrá-lo com uma vinheta clínica.
Trata-se de uma mulher de 20 e poucos anos, que buscou comigo consulta médica para se queixar de crises recorrentes de enxaqueca, tendo realizado anteriormente inúmeros atendimentos com outros colegas em função da mesma situação. Segundo ela, o problema começou ainda na infância, todavia piorou a partir dos seus 16 anos de idade, quando as dores de cabeça tornaram-se mais frequentes e eventualmente incapacitantes, a ponto de lhe causarem faltas no trabalho e de necessitar atendimentos de urgência para ser medicada com analgésicos endovenosos injetáveis. Ao ser questionada sobre as características dos sintomas que ela supõe ser um quadro clínico enxaquecoso, a paciente fornece praticamente a definição dos livros de medicina: uma dor pulsátil que lhe ocorre numa das metades do crânio, algumas vezes no lado direito, outras no esquerdo, de forte intensidade, associada a hipersensibilidade à luz, náuseas e vômitos.
A jovem mulher contou que as crises severas de sua enxaqueca têm acontecido, em média, cinco ou seis vezes por mês e que, embora passe alguns dias totalmente livre das dores de cabeça, em aproximadamente metade dos dias do mês sofre com os sintomas em algum grau, ainda que sem a mesma intensidade das crises. Ela nunca apresentou alterações neurológicas ao exame físico que levassem os médicos a suspeitar de alguma doença orgânica associada ao quadro clínico, porém, em função da cronicidade e insistência dos sintomas, já havia realizado pelo menos três exames de imagem do crânio. Todos resultaram normais e, portanto, ratificaram a hipótese diagnóstica de ser apenas enxaqueca.
Onde a medicina coloca frequentemente esse “apenas”, a psicanálise deve adicionar as aspas, ao trazer um olhar diferente para o sintoma. É justamente nesse furo deixado pela medicina, do sintoma menosprezado por não se relacionar a alguma condição de doença identificável de modo objetivo no organismo, que a psicanálise entra. Ela foi criada inicialmente para lidar com uma condição clínica, a histeria, que desafiava a medicina nesses mesmos moldes da enxaqueca, ao se apresentar como enfermidade que afetava o corpo sem lhe causar anomalia orgânica. Freud descobriu que naquele corpo afetado havia um dizer, um saber inconsciente. E a pretensão do psicanalista é, conforme ele afirma nas “Conferências introdutórias à psicanálise”, descobrir o terreno comum a partir do qual se possa compreender a convergência do distúrbio físico e do psíquico (1). Com esse tipo de descoberta, que se dá aos poucos, através das muitas associações que podem emergir na transferência entre paciente e analista, a tendência dos sintomas é se dissolver e desaparecer.
Ainda que a histeria seja o protótipo das enfermidades que deu início às investigações psicanalíticas, na época de Freud as enxaquecas também já eram um problema clínico relevante. Ele próprio sofria de dores de cabeça recorrentes, muito provavelmente enxaquecosas, de acordo com informações autobiográficas e biográficas (2). Também Dora, uma de suas pacientes mais famosas, foi acometida por enxaquecas entre os 12 e 16 anos de idade (3), conforme descrito em “Análise fragmentária de uma histeria”. Em consequência, as teorias de Freud sobre a etiopatogenia da dor, incluindo a enxaqueca, que a priori estavam focadas em hipóteses neurofisiológicas, muito por conta de sua formação como neurologista, anterior ao psicanalista, foram posteriormente substituídas por hipóteses psicodinâmicas, baseadas na interação entre forças conscientes e inconscientes, que na atualidade continuam a ser importantes para a compreensão desses estados dolorosos (2).
Talvez possamos nos referir à enxaqueca como um sintoma histérico, tendo em conta que nela, assim como na histeria, não existem alterações detectáveis em exames complementares. Fato é que em ambas as situações os sofrimentos impostos aos pacientes são muito reais e bastante prevalentes. A própria ciência médica demonstra que sintomas somáticos (corporais) sem causa orgânica identificável são bem mais comuns do que aqueles em que a alteração orgânica pode ser identificada e uma doença diagnosticada (4). Entretanto, apesar da elevada prevalência na clínica, a experiência revela que provavelmente a maioria dos médicos, que não costuma ter contato com psicanálise e teorias psicodinâmicas na graduação, encontra-se despreparada para lidar adequadamente com pacientes que se queixam de sintomas sem causa orgânica identificável. Habitualmente, após definido o diagnóstico de enxaqueca, por exemplo, o tratamento médico convencional concentra-se na prescrição de fármacos analgésicos, alguns para abortar os episódios agudos de dor, outros com função profilática. Em suma, é uma abordagem que se esforça para suprimir o sintoma, sem procurar dar a devida atenção ao seu contexto.
Tecer críticas a tal reducionismo não significa dizer que as medicações sejam irrelevantes no tratamento da enxaqueca, significa não se conformar em ficar restrito a elas. A limitação da medicina não se dá por acaso, tendo em vista que, ao se observar como a literatura médica dominante aborda a enxaqueca, percebe-se que os textos se concentram na mera descrição dos sintomas e nos medicamentos que podem ser prescritos para amenizá-los, mas raramente explicam ou levantam hipóteses sobre as origens do quadro clínico. Nas poucas vezes em que isso é feito, lançam teorias mal fundamentadas sobre genes, nervos, vasos sanguíneos etc., sempre atreladas ao substrato biológico do corpo, não ao anímico. Temos aqui bem representada a ideia da falha epistemo-somática, encontrada num texto apócrifo de Jacques Lacan intitulado “O lugar da psicanálise na medicina”. O psicanalista francês apresenta esse termo para descrever a incapacidade do discurso médico de reconhecer e simbolizar a dimensão subjetiva e o gozo no corpo e na doença do paciente (5). Em outras palavras, é uma falha do saber médico em lidar com o corpo para além da sua dimensão biológica, ignorando o que o dono desse corpo vive e sente.
O caso é que as pessoas que padecem de sintomas físicos, mesmo depois de investigada e descartada a hipótese de estarem associados a alguma doença orgânica, dificilmente buscam ajuda no consultório de psicanalistas. Essas pessoas comumente ficam presas à racionalidade médica biologicista, alheias ao corpo erógeno que possuem, o qual se afeta, marcado pela linguagem e pela pulsão:
Embora muitas vezes o sujeito procure a ciência médica para desvendar seu sintoma, as queixas e lamentações escapam à apreensão do corpo como organismo. O corpo é uma realidade para além da realidade bruta, visto que o inconsciente nos leva a supor que a realidade não é um dado primário, ela é fantasmática, marcada pelas modalidades de gozo, pelo desejo e seus laços sociais, o que não deixa de ter reverberações no corpo. Há uma coreografia, ou seja, uma grafia com o corpo, que é singular (6, p. 26).
Pois bem, voltemos à jovem mulher de nossa vinheta mencionada anteriormente. Ela parecia bastante cansada e desiludida com a abordagem estritamente médica, demasiadamente falha, de seu quadro clínico migranoso (a título de curiosidade, migrânea é considerado o termo mais técnico na medicina para se referir à enxaqueca; derivado do grego “hêmikranion”, significa “metade do crânio”, como é o padrão de apresentação desse tipo de dor de cabeça ou cefaleia). Pensei, pois, que era necessário proporcionar àquela paciente uma escuta para além da simples descrição de seus sintomas, ampliando o espaço da consulta médica para ela falar também de questões de ordem subjetiva que pudessem se relacionar com suas queixas físicas. Entretanto, era fundamental não perder de vista algo crucial: a paciente estava em uma consulta médica, não numa sessão de análise. Portanto, pelo menos naquele primeiro momento, não havia demanda de análise.
Apesar de a escuta psicanalítica ser bem-vinda nas consultas médicas, especialmente diante de situações clínicas como as que estão em pauta neste trabalho, há que se ter bastante cuidado para não tentar psicanalisar o paciente, ainda que se tenha formação em psicanálise, quanto se está na posição de médico. Da mesma forma, não é recomendável medicar o paciente, mesmo tendo graduação em medicina, quando se ocupa o lugar de analista. Feitas essas ressalvas, podemos seguir os passos do médico e psicanalista Michael Balint, considerado um dos pioneiros no desenvolvimento da Medicina Psicossomática, área de conhecimento que promove a articulação entre Medicina e Psicanálise. Criador do termo “medicina centrada na pessoa”, Balint enfatizou a importância de que fossem levados em conta os aspectos subjetivos envolvidos na atividade médica, ressaltando que conceitos fundamentais da psicanálise, especialmente a transferência, devem ser valorizados e pensados para o bom exercício da medicina (7, 8).
Apostando na força da transferência, procurei deixar aquela paciente bastante à vontade para falar de outras coisas, não somente da enxaqueca, depois de ter investigado apropriadamente as características médicas convencionais de seus sintomas. Contou-me que havia se casado há pouco tempo, que estava “tudo certo e tranquilo” no matrimônio e que pensavam em ter filhos futuramente. Revelou trabalhar como professora, profissão que considerava “um pouco complicada, muito estressante”, mas que apesar disso a levava bem. Pouco a pouco, chegou a lugares aparentemente mais nevrálgicos de sua história pessoal, ao recordar-se da morte prematura da mãe, vitimada por um infarto fulminante do coração na quinta década de vida, quando ela, minha paciente, tinha somente 16 anos de idade. Pontuei que foi também essa a idade que ela havia marcado como o momento em que pioraram significativamente suas crises de enxaqueca. E tal pontuação parece ter aberto a mente dela para muitas lembranças, algumas um tanto dolorosas, acompanhadas de choro, entre as quais a grande dependência que sentia em relação à mãe, que subitamente saiu de cena falecida, e o distanciamento do pai, de quem não teve notícias durante muito tempo, para depois só saber dele também morto.
Podemos aplicar a escuta psicanalítica de diversas maneiras ao ofício de médico e isto não é algo novo, apesar de caminhar à margem do ensino tradicional da medicina. Começando pela medicina centrada na pessoa, que propicia que a subjetividade seja expressa e levada em conta durante as consultas médicas, passando pela compreensão das queixas e demandas dos pacientes dentro das dinâmicas pulsional, transferencial, do desejo e do gozo, e chegando ao entendimento do acompanhamento longitudinal, que nos direciona à ideia de cuidar ao longo do tempo, ao invés de necessariamente almejarmos uma cura que é inalcançável para determinadas condições humanas. Assim podemos, quem sabe, abrir para os pacientes a perspectiva de um tratamento analítico, que não visa à eliminação dos sintomas do sujeito, mas sim conduzi-lo a encontrar novas formas de lidar com o incurável do sintoma, elaborando um saber que produza uma transformação na sua forma de gozo (9).
Finalizei a consulta daquela jovem mulher sem saber ao certo como se comportaria sua enxaqueca dali em diante, tampouco se teria motivação para fazer uma psicanálise posteriormente. Fato é que ela demonstrou gratidão, pois passou a compreender os sintomas de modo distinto da superficialidade com que anteriormente eles foram tratados. E não deixou de receber prescrições apropriadas para a prevenção das dores de cabeça e para aliviá-las quando porventura se apresentassem insuportáveis.
Bruno Guimarães Tannus
psicanalista e médico especialista em Medicina de Família
CRM-PR 25429 / RQE 35797
Nota: este artigo foi originalmente apresentado na Jornada de Trabalhos da Biblioteca Freudiana de Curitiba, em 04 de dezembro de 2025.
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REFERÊNCIAS:
1. Freud S. Obras completas. Vol. 13: Conferências introdutórias à psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Tradução: Sérgio Tellaroli.
2. Karwautz A, Wöber-Bingöl C, Wöber C. Freud and migraine: the beginning of a psychodynamically oriented view of headache a hundred years ago. Cephalalgia. 1996 Feb;16(1):22-6. doi: 10.1046/j.1468-2982.1996.1601022.x. PMID: 8825695.
3. Freud S. Obras completas. Vol. 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901–1905). 11ª ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2016. Tradução: Souza PC.
4. Lieberman JA 3rd, Stuart MR. The BATHE Method: Incorporating Counseling and Psychotherapy Into the Everyday Management of Patients. Prim Care Companion J Clin Psychiatry. 1999 Apr;1(2):35-38. doi: 10.4088/pcc.v01n0202. PMID: 15014693; PMCID: PMC181054.
5. Lacan J. O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise n.32, p. 8-14. São Paulo: Eolia, 2001 (obra original publicada em 1966).
6. Coppus AN et al. O medo que temos do corpo: a psicopatologia na vida cotidiana. Analytica: Revista de Psicanálise; 2014, 3(5): 20-36. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-51972014000200003&lng=pt&tlng=pt [acesso em 09 set. 2025].
7. Eksterman A. Medicina Psicossomática no Brasil. In: Mello Filho J, Bird M e cols. Psicossomática hoje. 2 ed. Porto Alegre: Artmed; 2010, p. 39-45.
8. Stewart et al. Método clínico centrado na pessoa: transformando o método clínico. 3 ed. Porto Alegre: Artmed; 2017.
9. Gonçalves GA. Corpo e clínica psicanalítica: teoria e prática. Curitiba: Juruá; 2022.
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Imagens do post, na ordem em que aparecem:
Migraine - Lucile Maury
disponível em https://www.artalistic.com/en/migraine.html
Migraine through the years: migraines in adulthood and middle age - TheraSpecs
disponível em https://share.google/images/GzAIVDYpWRruDrWaF
Migraine drawnin - Hope Ewing | Saatchi Art
disponível em https://share.google/images/6EWcKhXyenNJZvFO0
[acesso em 03 dez 25]



Impecável artigo, Dr. Bruno, com a possibilidade de profundas reflexões e de grande aprendizado.
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