A fibromialgia e a lei
Em alguns lugares vem se tornando lei: a fibromialgia passa a ser considerada uma “deficiência”. É o que diz, por exemplo, o projeto de lei n° 1573/2023 da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, ao reconhecer como deficientes as pessoas diagnosticadas com fibromialgia (SÃO PAULO, 2023). E esse projeto está acompanhado por similares em diversos outros Estados do Brasil, de modo que os pacientes fibromiálgicos possam gozar dos mesmos direitos e garantias legais anteriormente assegurados somente às pessoas deficientes. Mas será que faz sentido enquadrar a fibromialgia no rol das deficiências? E que problemas podem advir dessa controversa equivalência?
Para começo de conversa, visando minimizar as polêmicas que este texto poderá causar, reconheço que a fibromialgia é, indubitavelmente, uma enfermidade que traz bastante sofrimento para quem a desenvolve, notoriamente em função das dores musculoesqueléticas, tanto em crises agudas quanto em apresentação crônica. Essas dores, somadas aos demais sintomas da doença, a saber, distúrbios do sono, fadiga, desordens psíquicas (especialmente depressão) e até alterações cognitivas (OLIVEIRA JÚNIOR; RAMOS, 2019), podem de fato se configurar uma condição incapacitante em determinados momentos da vida da pessoa com fibromialgia. Minha experiência clínica enquanto médico não permitiria me enganar sobre isso.
Entretanto, quando falamos de fibromialgia, não podemos perder de vista que estamos lidando com uma enfermidade que não tem marcadores biológicos, ou seja, é uma condição na qual exames laboratoriais ou de imagem mostram-se todos normais, apesar da realidade dos sintomas. Sendo assim, a existência da fibromialgia depende quase que exclusivamente do discurso da pessoa que sofre, discurso enlaçado em critérios diagnósticos não mensuráveis e comumente aplicados de modo inadequado pelos médicos. Além disso, não se pode afirmar, do ponto de vista científico, tampouco pela prática clínica, que a fibromialgia seja uma enfermidade incurável ou permanente, ainda que se apresente usualmente crônica e difícil de tratar.
Colocadas tais ponderações, vou agora contar brevemente sobre o caso que motivou a presente reflexão. Recentemente atendi, em primeira consulta comigo, uma paciente que dizia ter recebido o diagnóstico de fibromialgia outrora, firmado por outro profissional, e que precisava de um atestado médico comprovando seu diagnóstico na atualidade. Seu intuito era justamente usufruir dos benefícios da legislação mencionada acima. A propósito, foi essa paciente quem me deixou ciente sobre a aprovação dos projetos de lei em questão.
Pois bem, expliquei à mulher que somente poderíamos atestar sua atual condição após realizar anamnese e exame físico detalhados, bem como exames complementares que pudessem excluir doenças com sintomas semelhantes, já que o diagnóstico de fibromialgia é firmado não apenas através dos critérios desta enfermidade, mas depende também da exclusão de doenças orgânicas. A paciente não pareceu muito satisfeita com meu posicionamento, talvez porque julgasse que seria mais simples e rápido obter o atestado médico pleiteado. Disse-me: “Sabe o que é, doutor, eu preciso muito desse diagnóstico!”, alegando que os sintomas prejudicavam-na bastante no trabalho e, com os benefícios da nova lei, poderia, entre outras vantagens, reduzir sua carga horária. Perguntei-lhe então se seria mais importante para ela o diagnóstico ou o tratamento da fibromialgia, mas titubeou e esquivou-se de me responder. Fato é que não quis conversar muito sobre o que eu tinha para lhe propor terapeuticamente.
Inconsciente ou não, é evidente que a busca pelos ganhos secundários de determinada doença torna-se maior quando se cria uma lei que traz algum tipo de vantagem ou alento em meio ao sofrimento do doente. Não pretendo apoiar nem condenar o mérito das reinvindicações das pessoas fibromiálgicas que se comparam com deficientes, afinal não sou legislador, tampouco juiz. Contudo, a vinheta clínica acima aponta para uma situação que, penso eu, em função da nova e questionável legislação, será cada vez mais comum e problemática na clínica da fibromialgia: pacientes que se apegam ao diagnóstico, não à possibilidade de cura. E, não menos importante, parece-me exagerado o poder pericial que se atribui ao médico nesse contexto, tendo em vista a carência de critérios objetivos para se atestar quem está ou não doente (embora isso aconteça há tempos na psiquiatria).
Para concluir por enquanto, sem a intenção de encerrar a reflexão, devo dizer que só não me senti mais desconfortável com o encontro clínico apresentado aqui porque estava advertido pelas seguintes palavras de Jacques Lacan, as quais, embora mais pertinentes à relação transferencial que acontece na clínica psicanalítica, também podem se aplicar a incontáveis casos de relação médico-paciente:
Quando o doente é enviado ao médico ou quando o aborda, não digam que ele espera pura e simplesmente a cura. Ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente, o que é totalmente diferente, pois isto pode implicar que ele está totalmente preso à ideia de conservá-la. Ele vem às vezes nos pedir para autenticá-lo na condição de doente. Em muitos outros casos ele vem pedir, de modo mais manifesto, que vocês o preservem em sua doença, que o tratem da maneira que lhe convém, ou seja, aquela que lhe permitirá continuar a ser um doente bem instalado em sua doença. (LACAN, 2001)
Para começo de conversa, visando minimizar as polêmicas que este texto poderá causar, reconheço que a fibromialgia é, indubitavelmente, uma enfermidade que traz bastante sofrimento para quem a desenvolve, notoriamente em função das dores musculoesqueléticas, tanto em crises agudas quanto em apresentação crônica. Essas dores, somadas aos demais sintomas da doença, a saber, distúrbios do sono, fadiga, desordens psíquicas (especialmente depressão) e até alterações cognitivas (OLIVEIRA JÚNIOR; RAMOS, 2019), podem de fato se configurar uma condição incapacitante em determinados momentos da vida da pessoa com fibromialgia. Minha experiência clínica enquanto médico não permitiria me enganar sobre isso.
Entretanto, quando falamos de fibromialgia, não podemos perder de vista que estamos lidando com uma enfermidade que não tem marcadores biológicos, ou seja, é uma condição na qual exames laboratoriais ou de imagem mostram-se todos normais, apesar da realidade dos sintomas. Sendo assim, a existência da fibromialgia depende quase que exclusivamente do discurso da pessoa que sofre, discurso enlaçado em critérios diagnósticos não mensuráveis e comumente aplicados de modo inadequado pelos médicos. Além disso, não se pode afirmar, do ponto de vista científico, tampouco pela prática clínica, que a fibromialgia seja uma enfermidade incurável ou permanente, ainda que se apresente usualmente crônica e difícil de tratar.
Colocadas tais ponderações, vou agora contar brevemente sobre o caso que motivou a presente reflexão. Recentemente atendi, em primeira consulta comigo, uma paciente que dizia ter recebido o diagnóstico de fibromialgia outrora, firmado por outro profissional, e que precisava de um atestado médico comprovando seu diagnóstico na atualidade. Seu intuito era justamente usufruir dos benefícios da legislação mencionada acima. A propósito, foi essa paciente quem me deixou ciente sobre a aprovação dos projetos de lei em questão.
Pois bem, expliquei à mulher que somente poderíamos atestar sua atual condição após realizar anamnese e exame físico detalhados, bem como exames complementares que pudessem excluir doenças com sintomas semelhantes, já que o diagnóstico de fibromialgia é firmado não apenas através dos critérios desta enfermidade, mas depende também da exclusão de doenças orgânicas. A paciente não pareceu muito satisfeita com meu posicionamento, talvez porque julgasse que seria mais simples e rápido obter o atestado médico pleiteado. Disse-me: “Sabe o que é, doutor, eu preciso muito desse diagnóstico!”, alegando que os sintomas prejudicavam-na bastante no trabalho e, com os benefícios da nova lei, poderia, entre outras vantagens, reduzir sua carga horária. Perguntei-lhe então se seria mais importante para ela o diagnóstico ou o tratamento da fibromialgia, mas titubeou e esquivou-se de me responder. Fato é que não quis conversar muito sobre o que eu tinha para lhe propor terapeuticamente.
Inconsciente ou não, é evidente que a busca pelos ganhos secundários de determinada doença torna-se maior quando se cria uma lei que traz algum tipo de vantagem ou alento em meio ao sofrimento do doente. Não pretendo apoiar nem condenar o mérito das reinvindicações das pessoas fibromiálgicas que se comparam com deficientes, afinal não sou legislador, tampouco juiz. Contudo, a vinheta clínica acima aponta para uma situação que, penso eu, em função da nova e questionável legislação, será cada vez mais comum e problemática na clínica da fibromialgia: pacientes que se apegam ao diagnóstico, não à possibilidade de cura. E, não menos importante, parece-me exagerado o poder pericial que se atribui ao médico nesse contexto, tendo em vista a carência de critérios objetivos para se atestar quem está ou não doente (embora isso aconteça há tempos na psiquiatria).
Para concluir por enquanto, sem a intenção de encerrar a reflexão, devo dizer que só não me senti mais desconfortável com o encontro clínico apresentado aqui porque estava advertido pelas seguintes palavras de Jacques Lacan, as quais, embora mais pertinentes à relação transferencial que acontece na clínica psicanalítica, também podem se aplicar a incontáveis casos de relação médico-paciente:
Quando o doente é enviado ao médico ou quando o aborda, não digam que ele espera pura e simplesmente a cura. Ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente, o que é totalmente diferente, pois isto pode implicar que ele está totalmente preso à ideia de conservá-la. Ele vem às vezes nos pedir para autenticá-lo na condição de doente. Em muitos outros casos ele vem pedir, de modo mais manifesto, que vocês o preservem em sua doença, que o tratem da maneira que lhe convém, ou seja, aquela que lhe permitirá continuar a ser um doente bem instalado em sua doença. (LACAN, 2001)
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REFERÊNCIAS:
LACAN, Jacques. O lugar da psicanálise na medicina. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise n.32, p. 8-14, 2001. São Paulo: Eolia. (obra original publicada em 1966). Disponível em: https://www.academia.edu/34382843/Lacan_o_lugar_da_psicanalise_na_medicina [acesso em 23 ago 2024]
OLIVEIRA JÚNIOR, José Oswaldo de; RAMOS, Júlia Villegas Campos. Adherence to fibromyalgia treatment: challenges and impact on the quality of life. BrJP, v. 2, n. 1, p. 81–87, jan. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/brjp/a/CtNGZGCR6w5dFxMFJg58sdr/abstract/?lang=pt [acesso em 23 ago 2024]
SÃO PAULO. ALESP. Projeto de lei nº 1573 /2023. 2023. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000537274 [acesso em 23 ago 2024]
As imagens do post, respectivamente na ordem em que aparecem, foram obtidas na internet nos seguintes endereços eletrônicos:
https://images.app.goo.gl/EHBPpasnb6GYFfwV8
What is Fibromyalgia?
https://images.app.goo.gl/wQkZB8k4KrHFiUZb6
More AI Midjourney art on chronic illness/chronic pain/fibro : r/ Fibromyalgia
[acesso em 23 ago 2024]
LACAN, Jacques. O lugar da psicanálise na medicina. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise n.32, p. 8-14, 2001. São Paulo: Eolia. (obra original publicada em 1966). Disponível em: https://www.academia.edu/34382843/Lacan_o_lugar_da_psicanalise_na_medicina [acesso em 23 ago 2024]
OLIVEIRA JÚNIOR, José Oswaldo de; RAMOS, Júlia Villegas Campos. Adherence to fibromyalgia treatment: challenges and impact on the quality of life. BrJP, v. 2, n. 1, p. 81–87, jan. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/brjp/a/CtNGZGCR6w5dFxMFJg58sdr/abstract/?lang=pt [acesso em 23 ago 2024]
SÃO PAULO. ALESP. Projeto de lei nº 1573 /2023. 2023. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000537274 [acesso em 23 ago 2024]
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As imagens do post, respectivamente na ordem em que aparecem, foram obtidas na internet nos seguintes endereços eletrônicos:
https://images.app.goo.gl/EHBPpasnb6GYFfwV8
What is Fibromyalgia?
https://images.app.goo.gl/wQkZB8k4KrHFiUZb6
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[acesso em 23 ago 2024]
Doutor Bruno, seu artigo me pareceu de extrema lucidez, muito equilibrado e leva a uma profunda reflexão a respeito desse tema e outros similares. Parabéns!
ResponderExcluirPrezado Mauricio,
ExcluirAgradeço por sua visita ao blog! E também pela leitura e pelo feedback.
Abraço