Fibromialgia: que dor é essa?
Visando aplacar os sintomas da fibromialgia, o tratamento médico convencional vem testando diversos medicamentos. A bola da vez parece ser o antidepressivo duloxetina, entretanto, nem a duloxetina nem qualquer outra medicação é garantia de que os sintomas dolorosos sejam aliviados, quiçá definitivamente suprimidos, em situações como a fibromialgia. Uma pena que poucos médicos dão-se conta disso, pois é justamente essa ignorância que nutre certas ilusões terapêuticas relacionadas à prescrição de psicofármacos para as pessoas que sofrem cronicamente, seja de sintomas psíquicos, corporais ou ambos.
Não é por acaso que as drogas antidepressivas, notadamente os tricíclicos (por exemplo, amitriptilina e imipramina), de fato podem auxiliar um pouco os pacientes fibromiálgicos. Também costuma ser útil a essas pessoas a regularidade da prática de exercícios físicos, embora a motivação para mantê-los não seja tarefa fácil. Contudo, não se deve perder de vista que tanto medicamentos quanto exercícios, entre outras medidas, são apenas adjuntos ao tratamento.
Fonte: Fagundes, Castilhos (2012).
Algumas experiências clínicas revelam que o pilar terapêutico da fibromialgia é oferecer ao paciente uma escuta de cunho psicanalítico. Este tipo de atuação pode permitir ao médico desenvolver com a pessoa atendida um espaço narrativo, no qual esta dará testemunho da realidade subjetiva de seu sofrimento. Deste modo, é possível traçar as primeiras coordenadas verdadeiramente terapêuticas no âmago do sujeito que sofre, pois fibromialgia é um nome “torto”, substituto, para o sofrimento real, ainda não dito de outro modo, que assim se vale do corpo para se expressar.Besset e colaboradores assinalam em um artigo: com efeito, tudo o que atinge o corpo mobiliza o campo do imaginário – fantasias, identidade e identificações –, mas também as modalidades de inscrição do sujeito no laço social e sua relação ao Outro, a dimensão simbólica. (...) Assim, no lugar de sustentar a ideia de que é preciso, a todo preço, “erradicar” definitivamente qualquer síndrome dolorosa e qualquer sofrimento psíquico associado, entende-se que seria útil atentar para o que está em jogo em termos estruturais e inconscientes. Isto vale também, claro, para outros sintomas dolorosos crônicos, não somente para as dores da fibromialgia.
Porém, a subjetividade parece incomodar demais a medicina dita científica. Ela quer, a todo custo, provar que existe substrato orgânico para explicar os sintomas dos pacientes. Nos casos de fibromialgia, e de muitos outros adoecimentos, tal esforço mostra-se em vão, pois simplesmente não existe lesão de órgão, ainda que o sintoma seja bastante real, conforme já mencionado. Os músculos estão íntegros do ponto de vista anatomopatológico, mas em algum lugar a psique grita de dor devido à estase da energia libidinal.
É preciso, sem desmerecer a importância da investigação médica convencional, também valorizar e abordar os aspectos subjetivos do adoecimento do indivíduo. O plano do padecimento psíquico é justamente aquele que se acessa e se trata recorrendo ao registro da subjetividade do indivíduo, à contextualização linguística e histórico-cultural das manifestações clínicas. Para além dos sintomas e das doenças, há sempre um sujeito em questão.
Também é fundamental explorar um pouco melhor a experiência vivenciada por cada pessoa com sua própria dor, ou seja, compreender as dimensões da doença: sentimentos e ideias do sujeito relativamente à dor, efeitos do sintoma sobre suas atividades e expectativas acerca do tratamento. Atentando-se às emoções envolvidas, torna-se essencial obter dados que permitam avaliar se há depressão, transtorno de ansiedade, abuso ou dependência de drogas, problemas familiares, conjugais ou sexuais. É preciso, pois, escutar mais atentamente os fibromiálgicos. A escuta qualificada torna-se terapêutica.
Lembro-me, como exemplo bem ilustrativo do que venho dizendo acima, o caso de uma senhora quase idosa, ainda muito bonita, que veio se consultar e disse-me ter fibromialgia. Naquela primeira consulta comigo, ela já usava duloxetina há algum tempo e, meio a contragosto, pois não notava grande melhora de suas dores desde que começara a medicação, solicitou-me assim mesmo que renovasse a receita. A priori ela não via outra perspectiva para seu tratamento. No entanto, pouco a pouco abrimos um canal de comunicação efetivo em suas consultas e aquela senhora conseguiu falar de assuntos muito dolorosos para si, especialmente sobre sua separação do ex-cônjuge e o fato de vê-lo com outra mulher atualmente. Dois sentimentos por ela considerados não nobres (raiva e ciúme), que teimosamente eram recalcados durante nossas primeiras conversas, finalmente puderam ser verbalizados e reconhecidos. Depois disso, não apenas suas dores musculoesqueléticas reduziram sobremaneira, mas também as doses de duloxetina, chegando ao ponto em que ela pôde suspender em definitivo essa medicação.
A entrevista médica ideal, portanto, deve permitir ao enfermo falar de si, sua família e seus relacionamentos, tanto quanto de seus sintomas, não se forçando uma separação entre o que é considerado orgânico e o que é visto como psicológico ou social. Nos casos de fibromialgia e de qualquer outra afecção dolorosa, a integração dos problemas resulta em algo imensamente produtivo para o esclarecimento da dor e, consequentemente, também para o tratamento oferecido às pessoas que procuram ajuda médica.
Finalizo hoje apropriando-me de algumas das sábias palavras de Jean-Yves Leloup, muito interessantes para a reflexão acerca do cuidado que qualquer profissional de saúde deve ter ao lidar não apenas com pacientes fibromiálgicos, mas com qualquer pessoa que sofre:
Ler o livro do corpo requer tempo e atenção. O problema da medicina moderna é de querer suprimir os sintomas, sem dar tempo de escutar o que a doença tem a dizer. Tratamos dos sintomas um momento, mas sua causa permanece. Não tivemos tempo de ir até as raízes. Não tivemos tempo para a escuta. E se tivemos tempo para escutar, muitas vezes não compreendemos o que nos foi dito.
EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
ResponderExcluir1. Fagundes R, Castilhos R. Fibromialgia. In: Gusso G, Lopes JMC (organizadores). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 1774-1778.
2. Besset VL, Gaspard JL, Doucet C, Veras M, Cohen RHP. Um nome para a dor: fibromialgia. Revista Mal-estar e subjetividade. 2010; 4(10): 1245-1269. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/malestar/v10n4/09.pdf (acesso em 28 jan 2018).
3. Pereira MEC. A crise da psiquiatria centrada no diagnóstico e o futuro da clínica psiquiátrica: psicopatologia, antropologia médica e o sujeito da psicanálise. Physis Revista de Saúde Coletiva. 2014; 24 (4): 1035-1052. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v24n4/0103-7331-physis-24-04-01035.pdf (acesso em 28 jan 2018).
4. Stewart M et al. Medicina Centrada na Pessoa: Transformando o método clínico. 3a ed. Porto Alegre: Artmed; 2017.
5. Lobato O. O problema da dor. In: Mello Filho J, Burd M (organizadores). Psicossomática hoje. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 235-54.
6. Leloup J-Y. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. 23a ed. Petrópolis-RJ: Vozes; 2015.
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[acesso em 29 jan 2018].